O ato violento não se limita a quem o sofre; estende-se e afeta quem o pratica e quem lhe vê os resultados: Espalha-se como uma mancha de óleo.
O jornalista é por um lado, um agente de informação, mas é, também, um agente de formação da opinião pública. É nestas duas perspectivas que o jornalista deve olhar a insegurança enquanto notícia: por um lado, cabe-lhe a obrigação de informar, mas, também, o resultado dessa ação pode induzir mais insegurança no público informado.
O jornalista em geral e o responsável pelo órgão de informação em particular têm de ter uma clara noção do equilíbrio da notícia geradora de insegurança: eles, não podendo, nem devendo, transformar o mundo num paraíso, não devem dar à vida em sociedade uma imagem que sirva para instabilizar os cidadãos. Qualquer das duas atitudes, em regra, só beneficiam poderes totalitários e não poderes democráticos. A democracia exige o conhecimento dos acontecimentos, mas não deve tolerar a sua exploração para além do que é necessário.
A desnecessidade verifica-se quando a notícia entra pela descrição macabra, assustadora, instabilizante; quando os pormenores são explorados com morbidez; quando o número de ocorrências semelhantes é explorado só para criar a idéia de grandeza excessiva.
A violência gera violência, não só como resposta direta, mas, e principalmente, como habituação.
Hoje em dia a informação propaga-se à velocidade da luz e, por conseguinte, as notícias sobre a violência atingem todas as pessoas de maneira mais ou menos idêntica; ninguém fica ileso. A violência é transmitida pelo rádio, pela televisão, pela internet, pelo cinema; chega-nos também pela imprensa escrita – jornais, revistas – e pela literatura de ficção.
Mas de que formas de violência estamos a falar? De guerras? De assaltos? De violações? De roubos? De todas e de nenhuma em especial, porque a violência é tudo o que não sendo catástrofe natural devia impressionar o cidadão comum, gerando-lhe uma sensação de medo ou de insegurança.
Em conseqüência desta envolvência constante com atos violentos operou-se no nosso psiquismo uma quase aparente apatia permanente perante a violência. A maioria de nós é capaz de estar a ver no telejornal as notícias sobre um acidente rodoviário, onde surgem imagens de pessoas mortas e feridas (imagens que sendo de grande dor são, também, de grande violência) e, no entanto, continuar a comer o jantar sem qualquer incômodo. Claro que a conseqüência imediata desta situação leva a que se
passe pelo mesmo acidente na estrada e se seja simplesmente motivado a parar ou abrandar a marcha pelo prazer mórbido de ser voyeur.
A convivência constante com a violência, que nos entra pela casa adentro, pelos olhos e pelos ouvidos,torna-nos indiferentes, apáticos, distantes à própria violência, mas, pior do que isso, torna-nos coniventes com a violência, porque as vítimas reais começam a ser para nós meros bonecos televisivos ou cinematográficos. A violência que nos envolve acaba por nos tornar profundamente egoístas perante a dor alheia ao ponto de só sermos sensíveis à violência que nos afeta diretamente.
E esta indiferença não nos é imposta por acaso, nem por causa do “furo” jornalístico; esta indiferença faz parte de um conjunto mais vasto que se inscreve na ideologia que impõe obediência às leis do mercado. O adormecimento da sensibilidade leva-nos ao adormecimento dos valores morais e éticos e esta apatia facilita a aceitação de idéias, hábitos e costumes que deixamos de “filtrar” e que nos passam a ser impostos pela mesma via que a violência nos adormece.
Realmente, pode-se afirmar que a convivência “pacífica” com a violência resulta de determinantes de natureza política, econômica e social.
Do ponto de vista político parece haver uma tendência global para a gestação e manutenção de uma apatia e conivência perante a violência, tornando-nos instrumentos passivos dela mesma. Uma tal passividade supõe a aceitação pela opinião pública das violências “convenientes” exercidas, no plano internacional, por alguns países com projeção global [USA], quando e onde acharem oportuno [guerra do Iraque].
No plano econômico, a passividade da opinião pública serve à domesticação das vontades individuais, tornando-nos agentes manobráveis dos imperativos do mercado, fato que nos leva a aderir à moda ou aceitar revoltar-nos perante o que é politicamente conveniente que provoque revolta (revoltando-nos até contra a “má” violência!).
Contudo, o cúmulo é atingido na perspectiva social, porque a aceitação passiva da violência gera a apatia perante as diferenças sociais mais gritantes, quer a nível nacional quer a nível global. É assim que se aceita com grande tranqüilidade de consciência que uma parte da humanidade morra todos os dias por falta de alimentos, como resultado do frio ou do calor, por não ter habitação, por falta de condições higiênicas, por não ter assistência médica nem medicamentos para se tratar.
Em resumo, a divulgação maciça da violência não a limita mas, pelo contrario, serve de anestesia perante a mesma violência, ao mesmo tempo em que como conseqüência, amplia a impunidade da mesma nas suas mais variadas e distintas formas.
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Texto extraido e organizado do livro de: FRAGA, Luis Alves de. Reflexões sobre o mundo actual: problemas sociais contemporâneos. Porto: Campo das letras, 2001.
(As notas entre colchetes são de nossa autoria)
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